Por Wilfred Gadêlha

 

Nesses tempos imediatos e descartáveis, sempre é uma alegria encontrar gente que tem o que dizer. Ainda mais depois dos quatro anos de trevas que vivemos no Brasil. A música sempre foi um desafogo em eras difíceis, em especial durante os tempos de reacionarismo e exacerbação da estupidez. Assim, é muito gratificante poder ver que há artistas que fazem questão de se posicionar a um ponto em que não é possível dissociar som de postura e de letras e de estética. Enfim, o que se chama de arte é um pacote completo. E isso nós temos no novo EP do trio O Cão, singelamente intitulado Devorados Pelo Cão.

 

A potência sonora que as seis músicas exalam está em igual estatura da manifestação lírica de uma galera consciente do que está acontecendo no mundo. Hugo Medeiros (guitarra e voz) e Eddie Cheever (baixo e backing vocals) chamaram Átila Mesquita ex- Corre Fêla da Puta  para a bateria e formaram O Cão dos escombros do Will2Kill, banda da qual fiz parte junto com os homens das cordas. Antes, Hugo e Eddie já haviam passado uma década e meia tocando death metal no Lethal Virus. Penso que é tempo suficiente para que ambos saibam exatamente o que estão fazendo.

 

Pegando suas influências de death e thrash metal, Hugo e Eddie apostaram suas fichas num hardcore cru, pesado, veloz e safo. Isso porque as músicas transitam de boa entre rapidez e carrego, mesclando riffs poderosos e intrincados às batidas tupatupá e breakdowns de quando em vez. As soluções encontradas pelos caras são inteligentes, pegando caminhos tomados anteriormente por Surra, Ratos de Porão e DFC, mas ajustando o Google Maps para um destino mais contemporâneo em canções como Jogo Sujo e Fiscal de Cu (não confundir com a homônima do Gangrena Gasosa).

 

Falando em contemporaneidade, as letras de Devorados Pelo Cão são acima da média. Inteligentes e perspicazes, servem como um manual anti-Bolsonarismo, mas não somente. As seis canções versam sobre os males destes últimos anos (intolerância, racismo, neofascismo, misoginia, preconceito), essa receita indigesta que tentaram nos enfiar goela abaixo. Nesse aspecto, minha preferida é Pau de Arara, que faz uma reflexão muito interessante sob uma cama sonora que aproxima O Cão das bandas anteriores de Hugo e Eddie, ao mesmo tempo em que vaticina: Ainda tem preto pobre no pau de arara.

 

Gravado entre dezembro do ano passado e fevereiro de 2023 no Estúdio Space Invaders, produzido pela própria banda com o auxílio de Ivo Lage e Gabriel Matos (captação) e Lucas Reis (mixagem), o EP deverá ser degustado em shows em que O Cão dividirá palco com bandas que comungam da mesma pegada estética/lírica - uma vez que, graças a esforços da cena como um todo, conseguimos mandar de volta para o esgoto grupos reacionários e aficionados do discurso de ódio. É mais ou menos uma metáfora que a capa feita pelo renomado Guga Baygon mostra: soltaram os cachorros em cima dos fascistas. E o resultado é essa porrada que você vai ouvir. 


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