2013 OU
2016?
Há algum tempo que já existe um debate sobre o que nos trouxe
até o atual momento trágico no Brasil. Esse debate acontece mais na esquerda,
mas tem ecos também na direita moderada que faz oposição a Bolsonaro. Qual o
momento chave definitivo que abriu o caminho para a surpreendente ascensão da
extrema direita ao poder em nosso país? Nesse debate entram muitas propostas e
variáveis de interpretação. É evidente que fazem parte da lista a facada que
Bolsonaro recebeu (que uma parcela iludida pelas teorias conspiratórias nega
que tenha sido verdadeira); a prisão do Lula (que tirou o mais forte competidor
das eleições de 2018); a ida de Ciro a Paris (que criou a ilusão confortável de
que Haddad perdeu por causa desse fato) e, sem dúvida alguma, os acontecimentos
de 2013 (manifestações populares contra os governos, incluindo os do PT e do
PSDB) e 2016 (o golpe que derrubou Dilma).
Há pelo menos duas variáveis de interpretação: uma é a da
pesquisa e leitura das informações (mediada, evidentemente, por nossas opções
metodológicas e teóricas) e a outra (mais popular e fácil) de acreditar em
paranoias conspiratórias. Essas últimas também são mediadas por escolhas
políticas e ideológicas. Os homofóbicos enxergam conspirações gays em todo
lugar e gays enxergam conspirações homofóbicas nos mesmos lugares; a Rede Globo
de TV é acusada de ser fascista, homofóbica, racista e a favor de Bolsonaro em
alguns setores. Em outros setores ela é acusada de ser comunista, feminista, a
favor dos gays e de Lula. Tem uma Rede Globo para qualquer conspiração. Escolha
a sua.
Isso não quer dizer que a Rede Globo seja santa e nem que
conspirações não existam. Houve sim uma conspiração para derrubar Dilma em
2016. Ela envolveu políticos, militares e a alta burguesia do Brasil. E isso
foi muito às claras. A FIESP entrou abertamente na campanha pelo impeachment e
as manifestações da direita foram televisionadas e apresentadas como festa
cívica. A conhecidíssima frase “com supremo, com tudo” resume bem o que
aconteceu.
Uma conspiração feita tão às claras derruba por terra um dos
princípios básicos da paranoia conspiratória: a de que conspirações são feitas
apenas às escondidas. Esse princípio leva o paranoico a imaginar conspirações
fantasiosas enquanto não percebe as reais embaixo do próprio nariz. E esse tipo
de confusão acontece com 2013. Manifestações populares espontâneas que
levantaram bandeiras de caráter popular e que se tornaram nacionais porque o
governo de São Paulo (PSDB) resolveu reprimi-las em frente às câmeras de TV. O
2013 brasileiro nada mais foi do que a extensão de um movimento de massas que
vinha desde 2011 no planeta. Nada mais do que a explosão de demandas populares
reprimidas ou não satisfeitas pelos governos de plantão. No caso do Brasil,
pelos governos do PT (federal, alguns Estados e prefeituras) e do PSDB (O
Estado de São Paulo e outros da federação e prefeituras). A resposta de ambos
os partidos foi clara: os tucanos acusaram as manifestações de “conspiração
petista” e os petistas respondiam com a acusação de “conspiração tucana”.
Durante dezoito anos (oito anos de FHC e em 2013 o PT
completava 10 anos no poder) os governos tucanos e petistas não enfrentaram e
nem resolveram as grandes questões nacionais. É preciso reconhecer que o
petismo se saiu melhor na luta contra as desigualdades, mas isso ficou às
custas da classe média, não dos ricos. Onde está a reforma tributária que
aumentou os impostos dos ricos? Alguém viu? Em parte foi por isso que uma
grande parcela da classe média foi ganha pela direita: era ela que estava
pagando o pato da redistribuição petista. Somando-se a isso as acusações de
corrupção (reais ou imaginárias, tanto faz), fechou-se o discurso antipetista
favorável à essa direita chucra. É claro que a classe média não é tão inocente
assim. Sempre existiram acusações de corrupção sobre o PSDB que foram
selecionadas para serem escondidas e esse debate envolve também outras questões
de natureza cultural.
E 2013 não foi feito por uma classe média raivosa fascista,
mas por amplos setores populares. Foi apenas quando Dilma assumiu em 2015 seu
segundo mandato que houve uma hegemonia clara da direita raivosa e golpista em
manifestações que se espalharam pelo país. Aliás, se 2013 foi tão desastroso
para o PT, por que Dilma foi eleita em 2014?
Onde estavam as massas para defender o “maravilhoso governo
de inclusão social do PT” em 2016? Havia um golpe em marcha com uma conspiração
real acontecendo. O partido e o governo não foram pegos de surpresa. A marcha
golpista até televisionada foi. As massas que o PT incluiu e as bases
militantes da esquerda poderiam ter saído às ruas para defender Dilma e o
programa de esquerda que ela havia anunciado durante a campanha de 2014. Mas aí
apareceu do nada um programa de corte de gastos públicos. Sim, os petistas
adoram esquecer as medidas impopulares de Dilma em 2015. Em um momento em que
uma direita militante está em marcha para um golpe, o governo petista rompe com
sua base acenando com medidas neoliberais duras. Deu para entender porque é
mais fácil culpar 2013?
Não só culpar 2013, mas também absolver 2016. Isso mesmo. E
isso feito em consonância com a parcela da direita liberal que hoje faz
oposição a Bolsonaro. O golpe de 2016 foi realizado para que dois projetos
fundamentais fossem concluídos: as reformas da previdência e trabalhista. O PT
se recusava a fazer tais reformas. Seu projeto de conciliação era claro:
medidas neoliberais e medidas de proteção social. O problema é que o
neoliberalismo é a guerra contra os pobres e uma direita militante crescia vertiginosamente
nas redes sociais. Bolsonaro não surgiu do nada. Uma conciliação entre a elite
e o povo, mediada pelo líder populista, pode existir temporariamente, mas não
para sempre. Mais cedo ou mais tarde a ala dura e fascista do neoliberalismo
iria agir. Era só esperar o PT cair em descrédito. O próprio governo Dilma deu
uma ajudinha para a direita nisso.
A direita liberal, amparada pela mobilização da extrema
direita, deu o golpe do impeachment. É claro que estava no plano uma possível
vitória futura do PSDB nas eleições presidenciais. A prisão do Lula, feita de
forma absolutamente ilegal, foi a cereja final para o bolo golpista. Mas aí o
Bolsonaro veio e pisou no bolo. O resultado do PSDB nas eleições presidenciais
foi pífio. O PT sobreviveu. E agora, com o Lula finalmente livre, pode voltar.
Mas para voltar ele precisa conseguir apoio de uma parcela da direita liberal,
aquela que deu o golpe. O petismo que saiu alardeando que “2016 foi golpe”
agora vai ter que esquecer o assunto. Para a direita liberal golpista é ótimo,
pois ela se esquiva da culpa por Bolsonaro ter ganhado a eleição.
Agora o lulopetismo e a direita liberal se juntam para
amaldiçoar 2013. Agora nesse ano de 2021, o segundo ano da pior epidemia de
nossa história, mas que é também um ano marcado por uma virada histórica na
América Latina, com a sucessiva derrota de forças neoliberais em todo o
continente, amparada em mobilizações de massas que colocam as elites em pânico.
Atualmente o neoliberalismo está em recuo até nos EUA. O governo Biden anunciou
um pacote econômico antiliberal. Ainda é cedo para avaliar até onde isso vai,
mas é um sinal de que as ideias que fomentaram os movimentos de direita nos
últimos anos no Brasil estão caindo em descrédito profundo. E servindo de
combustível para mobilizações de massas.
Esse texto não é anti-Lula ou anti-PT. Será necessário
votarmos em Lula no segundo turno em 2022. Precisamos sair do ciclo
bolsonarista. Hoje no governo federal está a pior escória de desclassificados.
Uma gentinha guiada pela irracionalidade fanática e anticientífica. Os
depoimentos na “CPI da covide” são mais do que claros ao comprovar a
irresponsabilidade canalha do governo em relação à epidemia. Mas será preciso
uma transição. O PT é o candidato mais forte para fazê-la. Mas essa transição
gerará um governo mais fraco ou mais forte do que os governos lulistas
anteriores? A condenação de 2013 e o esquecimento de 2016 são um péssimo início
de caminho. Não se pode conclamar as massas tendo como base a condenação de uma
mobilização de massas. No livro “Cidades rebeldes”, publicada pela Boitempo,
uma editora que tem tradição de publicação de livros marxistas, tem uma série
de artigos sobre 2013. David Harvey, Leonardo Sakamoto, Zizek, Mauro Iasi, são
alguns dos que contribuíram para o livro. Conclamo os petistas a se educarem
politicamente lendo tal livro. Deixem as paranoias ridículas para a direita.
Aristóteles Lima Santana é professor da rede pública e escritor.