TOTALITARISMO, UM TEMA QUE DEVE SER ATUALIZADO


Vamos começar lembrando de um caso recente. O jornalista William Waack foi pivô de um escândalo envolvendo racismo. Em uma conversa informal com outras pessoas dentro da empresa em que trabalhava (a Rede Globo de TV), ele, após escutar barulhos irritantes vindos da rua, soltou uma “pérola”: “isso é coisa de preto”. Não vamos ficar repetindo a acusação de racismo contra ele. A frase fala por si mesma. O escândalo foi tão óbvio que ele perdeu o emprego. O tema aqui é o totalitarismo e o caso envolvendo o sr. Waack é elucidativo em muitas questões.

William Waack é um anticomunista profissional, defensor radical do liberalismo thatcherista e fã do livro “1984”, de George Orwell. O sr. Waack não apenas leu esse livro. Mora dentro dele. O fantasma do estado totalitário e do grande irmão sempre aparecem para ele toda vez que um partido de esquerda (por mais moderado que seja) ameaça ganhar uma eleição.

Waack e tantos outros liberais que estão na política e no jornalismo apenas comprovam o que Zizek nos diz sobre o totalitarismo: ele é o monstro que é invocado para se combater qualquer política de esquerda (radical ou moderada). O conceito de totalitarismo tornou-se o antídoto para qualquer anseio utópico ou reformista de mudança social. Ele é invocado pelos liberais seja para combater uma guerrilha revolucionária ou um projeto de criação de um sistema público de saúde (como o projeto de Obama, nos EUA, ou a existência do SUS no Brasil). Qualquer projeto de assistência social ou de combate à privatização é vista como um “avanço do malvado estado totalitário”. Esse tipo de pensamento, inclusive, colonizou boa parte da esquerda reformista. Os líderes da social-democracia morrem de medo de serem confundidos com algum líder do antigo leste europeu socialista. O fantasma do totalitarismo também é presente na esquerda liberal reformista quando ela dá apoio a privatizações e quando não dá apoio a aumentos de impostos para os ricos. É um curioso fantasma muito útil para a direita e a elite econômica.

Isso não quer dizer que o totalitarismo não tenha existido, ou que tenha sido bom. Nem que tenhamos que deixar de ler “1984” (embora eu particularmente prefira “A revolução dos bichos”). Stálin perseguiu a esquerda do partido bolchevique e o nazi-fascismo perseguiu de forma bárbara todas as facções da esquerda onde governou. O tema do poder total do Estado deve nos interessar também, nós não podemos é nos pautar pela forma como a direita conduz o debate. Até porque depois de “1984” o tema do poder total continuou a ser desenvolvido tanto na ciência política como pela literatura.

O sr. Waack e seus amigos thatcheristas deveriam ler algumas obras do cyberpunk, um subgênero da literatura de ficção científica (também presente no cinema) em que o futuro distópico é descrito como sendo de alto nível tecnológico, concentração de renda excessiva, alienação das massas e um poder autoritário concentrado nas grandes corporações privadas. Estas estabelecem, a partir do alto desenvolvimento tecnológico, um poder despótico de controle e vigilância sobre as massas. São apresentadas às vezes com poderio policial e militar. Ou seja, o cyberpunk nos fala também de totalitarismo, mas a partir de empresas privadas.

Enquanto Waack tentava enxergar o grande irmão no Estado, ele já estava na empresa em que  trabalhava. Ele foi filmado em sua gafe e perdeu seu emprego. A vigilância total já existe. Nas empresas privadas.

Enquanto os thatcheristas se preocupam com a “ameaça terrível” de um bom sistema público de saúde, todas as empresas privadas montam engenhosos sistemas de vigilância. Se usarmos o sunglasses do filme They Live para ler o famoso “sorria, você está sendo filmado”, leremos na verdade “o grande irmão vela por você”. Hoje todas as corporações privadas não apenas vigiam pessoas em suas dependências, elas possuem poderosos sistemas de espionagem. Uma parcela desses sistemas serve para espionar os concorrentes, e outra parcela para espionar os consumidores.

Enquanto o típico ancap thatcherista se preocupa com a “ameaça terrível” do sistema de educação pública, o google já sabe tudo sobre ele a partir dos algoritmos. Sabe aquele teste de QI que você nunca fez? Os algoritmos já calcularam o seu e você nem sabe. Os algoritmos do google ultrapassaram os sonhos ingênuos de Orwell e Zamiátin. A futura ditadura despótica (de direita ou de esquerda, tanto faz) terá a seu dispor um sistema de controle e vigilância, criado pela tecnologia atual, que fará as teletelas parecerem brinquedos inocentes. Toda essa tecnologia está sendo criada por empresas privadas e não será preciso uma ditadura a partir do Estado para que prisões e campos de concentração possam existir. Em vários países já existem prisões privadas. Não será impossível uma Awshiwitz privada também.

O tema de um possível pesadelo totalitário futuro não deve ser menosprezado por nós, mas a forma como a direita liberal pauta o debate sobre esse assunto conduz mais à cegueira e a equívocos desastrosos. Hoje, concretamente, a grande ameaça totalitária vem do excesso de poder das corporações privadas . Até mesmo porque o que tivemos nos últimos quarenta anos foi um processo de diminuição do Estado a partir das políticas neoliberais. Considerar que esse Estado enfraquecido conseguirá construir um poder totalitário é tolice pura.

A fraqueza do Estado é um fenômeno preocupante. Hoje temos um processo de super acumulação de renda, quebra das leis trabalhistas, expansão da devastação ambiental, etc. Nada disso será contido com um Estado enfraquecido como temos hoje. E para piorar, uma epidemia de Covid-19 que pode ser apenas a primeira de muitas nesse século. Os resultados de contenção da epidemia são óbvios. Cuba, China e Vietnã a controlam melhor do que os EUA, Brasil ou Europa Ocidental. Ou seja, onde o Estado é mais forte e tem maior poder de intervenção, a epidemia tem menor poder de expansão.

Esse é o resultado que temos hoje com o enfraquecimento do Estado: as corporações privadas cada vez mais poderosas e uma epidemia que se expande sem freios. Os mecanismos tecnológicos de vigilância, controle e repressão sobre os cidadãos continuam se desenvolvendo e são as empresas privadas que as criam. As leis trabalhistas são quebradas sem resistência e a acumulação de renda nas classes altas continua a galope. Não estamos caminhando para “1984”, mas para o “admirável mundo novo” do cyberpunk. Vale lembrar que é bom ler muitos livros, mas não morar dentro deles.

 

Aristóteles Lima Santana é escritor e professor de geografia da rede pública.