Sávio Noras vem da nova safra da música alagoana, seu trabalho mistura música regional de Alagoas com um toque da nova MPB, batemos um papo legal com ele que vocês conferem a seguir.
Bacurau: Savio você vem de
uma família de músicos (Pifeiros) tradicional em Água Branca-AL, porém seu
estilo musical é mais contemporâneo, qual é a real influência da música de
pífanos, e quanto há dessa influência em sua música?
Sávio: Minha
forma de compor é caminhante e sempre parte de uma perspectiva macro, pela qual
consigo embutir muito conteúdo, por vezes, muito distantes um do outro. Uma
delas é a minha própria descendência, seja familiar ou do lugar onde cresci. O
fazer artístico é mais que a composição imediata de uma obra. Ao meu ver, estou
criando e reafirmando as formas que me dou ao mundo. Ter essa descendência
serve à minha arte me dando solidez. Mantenho respeito e fidelidade, revisito
com intenções de preservar o berço de onde comecei a ver o mundo como mundo, de
modo a preservar o que restou para aqueles que virão depois. É minha pátria, minha
origem, onde fora possível dizer “sim” à arte, e por isso a tendência é manter
sua inviolabilidade na memória. Os meus antepassados sou ainda eu, assim como
sou eles em vários aspectos. Meu estilo é contemporâneo porque estou no limite
do que se fala contemporâneo. No entanto, ainda sou os pifeiros sentados uns do
lado doutros tocando o supra-histórico, a arte e a religião, mas transmutado
pelo tempo. Crio e conceituo minhas composições, seja poética ou musical, em
cima desse grande berço conservando sua utilidade, os aspectos cerimoniais, a
naturalidade das minhas formas.
A minha descendência enquanto poesia ou como sonoridade, no sentido de usar os próprios pífanos na minha música, ainda não veio a tona. Salve um pequeno trecho de “Rua são bento” que coloco os pífanos como os que cantam o “ser-branco”. Talvez no processo ainda do Ser-Branco eu já consiga introduzir, mas certamente esse aspecto da minha arte merece um trabalho para si próprio.
Bacurau: Na descrição do
EP o “Ser-Branco” você caracteriza esse ser como uma efervescência da cultura e
da arte água-branquense, nos explique mais do se trata esse “Ser-Branco”?
Sávio: No
EP Ser-Branco eu tentei usar de um racionalismo próprio das ciências modernas,
mas sem sua finalidade epistemológica que é chegar numa Verdade. A ideia é que
a dimensão artística se sobreponha aos saberes pretensos fatídicos da minha
narrativa, de modo que a experiência estética eleve as nossas formas próprias
atuais enquanto seres que estão ligados a uma atmosfera histórica de lugar,
Água Branca. Eu chamei de Antropologia poética, um estudo sobre o
água-branquense: suas características psíquicas, comportamentais, sua relação
com a morte, com a caatinga, com a zona serrana, com a arquitetura, com sua
história, etc.
Com isso, eu conceituei todo o
EP nessa plataforma artística-narrativa de formar uma imagem a partir de vários
elementos de um Alter ego água-branquense. Certamente eu não quero traçar as
características que perpassam todos os água-branquenses, mas suspender a partir
das minhas experiências, e criar a partir do meu campo de visão um Ego do que
chamo do “Eterno Artístico
água-branquese”. Pois observando as atividades artísticas e sendo eu mesmo um
artista da cidade, percebo que Água Branca sempre foi uma terra muito fértil
não só para a plantação, mas também para a criação de artistas. Por mais que
não exista uma plataforma profissional da arte por falta de intervenção do
estado para criar concisão entre nós para que se tenha clareza de uma Classe
artística, a cidade sempre produziu sem o mínimo de incentivo artística da
cultura popular, cantadores, poetas, pintores, artistas plásticos, músicos de
modo geral; temos a banda santa cecília, uma filarmônica com mais de 90 anos de
existência. Cheguei a conclusão que o amálgama que se estabelece no ser humano
água-branquense, da natureza, arquitetura, historicidade, tradição, cria uma
pré-disposição à criação artística. Este ego, eu chamei de Ser-Branco, um ente
das caatingas, das serras, da disformidade barroca, do ruralismo, da neblina,
dos sentimentos mecancólicos ante-vida, da religiosidade.
E agora então chagamos na efervescência, pois tenho a impressão de que em período e períodos que se conectam no caminhar da história, a cidade forma gerações de artistas. E esta, a minha geração, está mais do que claro que é uma nova explosão da arte água-branquense. Artistas como Nouzinho, Gil artes, Cristiniano Guimarães, Regi Medeiros, se conectam uma nova abertura artística da cidade, devo citar aqui Síntia Freire, Hugo (Astronauta
Bacurau: Como é ser uma
artista underground no sertão alagoano, mais precisamente em Água Branca?
Sávio: A experiência
underground é por si já um infortúnio em qualquer parte do mundo, pois
considero o underground aquelas atividades que não são regidas, ou melhor, não
são acobertadas pela centralidade cultural contemporânea onde se tem condições
materiais e incentivo psíquico pata a continuação do fazer artístico. O
underground, o homem do subsolo, sempre estará reativo aos de cima, sempre será
aquele que ressente. Obviamente não é um demérito, mas digo isto para
esclarecer que o fazer artístico underground sempre será desconfortável, é a
arte marginal, independente, transgressiva. Não me considero mais underground,
mas ainda continuo sendo pelo menos alternativo, no sentido de faço um tipo de
arte que não subsolista, não de resistência, mas de afirmação da individuação,
é furar a própria centralidade usando de regras próprias na composição, mas
usando de métodos de disseminação comuns ao centro. E, além disso, faço uma
arte voltada também para os do centro. Minha arte além de tudo é uma tentativa
educadora, que tenta mostrar o futuro através de nossos próprios olhos, da
nossa tradição, da crítica do que passou e da monumentalização do que nos é
grandioso. Portanto, eu estou fora do centro, mas estou na proa, tentando fazer
com que nossa navegação seja dirigida por nós mesmos. Que seja para o
desconhecido, mas para o nosso desconhecido! Minha arte é a representação do
estibordo cultural de Água Branca. Sou um underground às avessas.
Bacurau: A cultura nordestina
é vista no sul e sudeste como algo regional e tradicional, se assistir aos
filmes e novelas que se passam no Nordeste, verá que há essa caricatura do
nordestino, como o linguajar, o modo de vida etc. Você faz um som experimental
totalmente fora desse contexto regional, assim como Wado, Fino coletivo e a
Suzi Mariana músicos alagoanos, acredita que isso vem mudando na música
alternativa alagoana?
Sávio: Acho a cena
alagoana muito pobre e sem perspectiva, sintomas de uma série de fatores que
acabam desfavorecendo a arte alagoana. Uma cena sem consenso, sem nem batalha,
sem incentivo, sem estilo. Muitas coisas grandes são feitas, muitos artistas
interessantes e dedicados, mas sem um suporte estatal, tampouco interesses
políticos da classe. O que vejo é uma falta de consciência de classe artística.
Eu mesmo não me sinto parte de coisa alguma alagoana, pois não vejo perspectiva
alagoana nenhuma, a não ser quando encontramos um ou outro artistas pelo mundo,
por vezes em ambientes não artísticos. O que ouço sobre a arte alagoana sempre
é de uma visão centralizadora dos artistas do litoral e que é sempre negativa,
com um teor de belicismo negativo. Pelo que é dito pelos artistas que conheço é
que existe uma luta de todos contra todos, o que só posso pensar que é uma escassez
de espaços e de oportunidades. No entanto, não tenho como falar da arte
litorânea poque não a conheço de perto, e isto já é um sinal de que não há uma
ponte de acesso de cá pra lá, e de lá para cá. A arte alagoana, no momento, é
sem originalidade, sem ousadia, pobretona e eunuca. Antes a arte alagoana se
apoiasse nesses estereótipos nordestinos. Há muito que nem isso consegue fazer.
Vejamos as listas de discos e artistas revelados anualmente e teremos vergonha
de ver nossos vizinhos tomando a dianteira e os alagoanos sem nem saber o que
lhe é energético nessa largada. A arte alagoana está em cataclismo. Um
aglomerado de informações desorganizadas e estéreis. Não há um movimento.
Poderia tecer mil elogios a arte alagoana, mas não sou otimista e acho isso
irritante. Estou falando aqui para os próprios artistas. Só olhar uma reunião
dos fóruns pela Lei Aldir Blanc e veremos a quantidade de ressentimento que
paira sobre a arte alagoana.
Mas
respondendo a pergunta objetivamente agora, há um movimento que é de alagoas
mas não é alagoano. O movimento artístico que fora já alternativo, mas não o
considero mas pois estabeleceu-se no centro: a arte do sertão alagoano.
Piranhas, Água Branca e Delmiro tem uma forte ligação que já vem se desdobrando
como movimento há pelo menos 8 anos. Nesse movimento a arte sai completamente
dessa lógica estereotipada e ressentidamente alagoana. Caio Praças, Edson Szafa,
Winicius Araújo, Mr. Robot, os participantes da Zaréu records, Cleberton
Barboza, enfim, fazem uma geração brilhante que deram o primeiro passo para um
novo horizonte artístico, forte e genuinamente sertanejo, um sertanejo do
futuro, muito longe de ser o nordestino matuto e coisas mais. Quanto aos
sulistas, não conheço o que aquele povo faz artisticamente. Tenho google,
celular e televisão, mas não vejo. Talvez poderíamos recriar Diógenes como um
Nordestino segurando o lampeão da arte ao meio dia, procurando a arte do sul. O
sul não nos deve importar se não ajuda e não produz o Brasil.
Bacurau: Você é
idealizador e produtor do festival Zabumba Serrana, evento de cunho
alternativo/underground realizado em Água Branca-AL, que tem como objetivo dar
visibilidade a artistas da região, qual é legado desse festival?
Sávio: O Zabumba Serrana representa, ao meu ver, o nascimento da arte água-branquense enquanto movimento artístico. Um despertar para o exterior, para o profissionalismo, no sentido de que a arte pode gerar rendas e deve ser fertilizada como uma atividade legítima de uma vida, e não só um entretenimento. O Zabumba foi capital para o movimento que falei anteriormente, muito do que fazemos hoje tem muito do coração zabumbista. O Zabumba Serrana é, na verdade, feminino, criativo, materno, uma mãe.
Bacurau: O ano de 2020 foi
uma an perdido para cultura nacional, a pandemia inviabilizou milhares de
projetos culturais, mas a “lives” vieram pra ficar, nesse contexto de evento
“indoor e on line” quais são seus projetos para 2021?
Sávio: Eu não pretendo ter
carreira, apesar de já ter uma bem longa para meus 22 anos. Mas não pretendo sair
de palco em palco tocando minhas músicas. A energia do show é de êxtase para
todo artista. Mas minha arte é de quarto. Eu gosto de compor sem maiores
compromissos, o que a criação implica já é muito pesado para eu ter que lhe dar
com exigências anti artísticas. Nesse sentido, as lives e os modos caseiros de
se fazer arte para mim foi muito produtivo e me deu uma grande perspectiva. A
inviabilização dos shows nas ruas clarificou o poder da virtualidade,
evidenciou caminhos.
Eu pretendo lançar meu Ser Branco
e mais uns 4 singles produzidos todos no meu quarto. Já comecei a produção de
dois singles e estou gravando o EP. Vamos ver o que me espera, o quanto minhas
opiniões mudarão quando chegarmos na pós pandemia. É tudo muito incerto e isso
é positivo. Que Dionísio nos carregue.