João Santos, historiador e militante do PCB.

O Deputado Federal Daniel Silveira (PSL) foi preso por ordem do Ministro do STF Alexandre de Moraes [1]. O motivo de sua prisão foi o ataque criminoso aos Ministros da Suprema Corte, incitação à violência e os ataques à democracia proferidos pelo réu em suas redes sociais. É fácil compreender os fatos em qualquer jornal da grande mídia. Em resumo: o bolsonarista reivindicava, entre outras coisas, a volta do AI-5 [2] (uma das mais duras medidas autoritárias criadas pelo governo da Ditatura empresarial militar). Entre as suas intenções estava a ideia de reviver no presente o fechamento do STF e do Congresso dando ao poder executivo poder concentrado e centralizado. No dia 19-02-21, a Câmara Federal, após votação acachapante, decidiu por manter a prisão [3] do Deputado que quebrou a placa em homenagem a Marielle Franco, deputada do PSOL brutalmente assassinada pela milícia do Rio de Janeiro [4].

Na sessão da câmara que manteve sua prisão diversos partidos e lideranças apresentaram argumentos pró e contra a prisão. O próprio deputado se defendeu evocando a liberdade de expressão (aquela mesma que o AI-5 decapitou). Isso mesmo, leitor camarada. Ele pediu AI-5 e depois argumentou, como direito de fazê-lo, a liberdade que o AI-5 não dava. Quem disse que o fascismo e a dissonância cognitiva não podem andar juntos? Além de Daniel e de seu advogado, como dito, diversos partidos falaram e, entre eles, o Partido Novo apresentou um argumento que nos serve de guia para análise: segundo a liderança do partido, a prisão de Daniel é ilegal e apresenta atitude autoritária vinda do STF. Ainda segundo o Deputado Federal Marcel Van Hattem (Partido Novo), vivemos nesse exato momento, um evento histórico similar ao fato que foi “a causa” do AI-5. Vale aqui uma breve lembrança daquele tenebroso momento [5].

O AI-5, para começo de história, teve o caminho pavimentado por outros Atos Institucionais que ampliavam o poder do governo, restringindo as condições democráticas mais básicas. Além disso, o decreto de 13 de dezembro de 1968 ocorreu em um chão histórico de aumento das tensões sociais diante do paulatino fechamento do regime militar. [6] A título de exemplo, lembremos as grandes greves metalúrgicas e da marcha dos 100 mil. O regime militar e suas alas mais “duras” já se assanhavam por medidas de maior controle sobre a classe trabalhadora e movimentos populares. No clima de proibição o lema “é proibido proibir” pode sintetizar a crescente de contestação. [7] A cassação de lideranças políticas, por exemplo, tentava aleijar o movimento. Como estopim, e não causa, no dia 2 de setembro, o Deputado Márcio Moreira (MDB) Alves (citado pelo Partido Novo na defesa do Deputado Daniel Silveira para equiparar os momentos históricos de ontem e de hoje), se pronunciou na Câmara Federal convocando o povo brasileiro a se abster de participar de desfiles cívicos de 7 de setembro, que reforçavam simbolicamente as Forças Armadas. Era a brecha que o Costa e Silva queria. A “ala dura” foi atendida e os pronunciamentos foram considerados pelo Regime Militar como ofensivas e provocativas. O Governo Militar solicitou à Câmara a cassação do deputado e teve o pedido negado, no dia 12 de dezembro (inclusive por deputados da ARENA, o partido da Ditadura). No dia seguinte o AI-5 foi baixado. Voltemos ao presente.

Tanto o Partido Novo quanto partidos de Esquerda como PCO (Partido da Causa Operária) [8], se valeram da comparação entre a prisão de Daniel Silveira e o caso do Deputado Márcio Moreira em 1968. O passado não é um gabarito, para onde se aponta as imagens a partir do presente buscando nelas similaridades com o passado para explicações tout court do hoje.

No ano de 1968 estávamos sob um Regime Ditatorial associado à burguesia nacional e internacional. O STF estava fechado, a Câmara Federal e o Senado Federal estavam abertos, porém completamente aparelhados com ajuda dos outros Atos Institucionais. O Regime já estava fechado e se endureceu, a conjuntura de contestação da Ditadura tensionava a corda, e o caso do Deputado Marcio Moreira foi usado de bode expiatório para um avanço do controle militar e para a implementação mais inconteste de uma série de medidas econômicas de arrocho para dar andamento aos interesses das classes dominantes a quem, de fato, servia o chumbo dos anos de chumbo.

Comparar aquele contexto com esse é uma aberração anacrônica [9]. Não se pode fazer esse tipo de analogia, pois não há similaridade nas condições objetivas em cada tempo histórico. O que há de igual são elementos imediatos (deputado, Câmara Federal etc), mas nada substantivo. Tal análise corrompe qualquer compromisso com uma análise histórica científica e é um desserviço. Daniel Silveira fez, abertamente, um chamamento com teor antidemocrático, violento, provocativo e perigoso. Daniel Silveira, sob o regime democrático, cometeu crimes previstos contra o STF (que nesse momento ainda está aberto e aparentemente a serviço da ordem democrática). Daniel, ao contrário de Márcio Moreira, está na base do Governo, eleito democraticamente, em um contexto de avanço das forças com as quais Daniel comunga, apoia e defende (Violência contra os povos indígenas, fortalecimento do ruralismo, aumento da violência policial e paramilitar etc - o extremo oposto de Marcio Moreira). A prisão decretada pelo STF, colocada sob perspectiva de totalidade, não encontra respaldo na ideia de um movimento de fechamento ditatorial que possa ser visto com similaridade com o passado (passado esse no qual a própria Corte estava fechada). Do ponto de vista sincrônico (dos acontecimentos visto de perto) e do ponto de vista diacrônico (dos acontecimentos vistos no todo) é uma comparação que só pode ser feita por ignorância, má fé ou as duas coisas.

A análise do PCO e do Partido Novo (que não surpreendem na concordância), reforçam o revisionismo histórico à direita, pois colocam Marcio Moreira (um opositor do Regime Militar) e Daniel Moreira (parte do atual governo protofascista que ensaia uma escalda autoritária [10]) como similares. Mais que isso, reduzem à fórmula deputado + crítica + prisão = fechamento do regime, dois momentos históricos completamente diferentes. Igualam a oposição de Marcio Moreira pela democracia aos crimes antidemocráticos de Daniel Silveira. Arrancam a política da história, desviam o foco e produzem uma leitura que favorece as ânsias autoritárias. Liberdade de expressão não é liberdade de expressar-se criminosamente. A afronta ao Regime Militar e contra o STF em um momento democrático da vida política nacional não podem ser pesadas como iguais, sob a pena de perdermos a capacidade de diferenciar o lado certo da história da barbárie.

 

1.       https://www.bbc.com/portuguese/brasil-56101306

2.       https://pcb.org.br/portal2/21634/meio-seculo-de-ai-5-ditadura-nunca-mais/

3.       https://www.camara.leg.br/noticias/729294-camara-decide-manter-prisao-do-deputado-daniel-silveira

4.       https://www.correiobraziliense.com.br/app/noticia/politica/2018/10/03/interna_politica,710027/candidatos-quebram-placa-e-celebram-destruicao-de-homenagem-a-marielle.shtml

5.       Plenário da Câmara Federal, Brasília-DF, 19-02-2021. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=wiDDd7PfEbs – Assistir a partir das 2:22:40.

6.       https://pcb.org.br/portal2/21634/meio-seculo-de-ai-5-ditadura-nunca-mais/

7.       https://cpdoc.fgv.br/producao/dossies/FatosImagens/AI5

8.       É possível ver tal posição do PCO no site do partido www.pco.org.br e também no seu instagram @pco.29.

9.       Anacronismo, sincrônia, diacronia e porque a história não se repete. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=WjUOCaY4GLI

10.   https://www.vozdopovo.org/caso-daniel-silveira-ensaio-de-um-novo-metodo-tatica-de-tentativa-de-golpe/