A LACRAÇÃO, O BBB E ETC.
Você já deve ter notado (independente de assistir ou não) no
que o programa BBB se transformou: um lugar em que pessoas narcisistas tentam
se passar por heróis enquanto sabotam e destroem outras. Bem, mas isso sempre
foi assim, não é mesmo? A lógica sempre
foi clara: tenho que eliminar meus concorrentes e ser aprovado pelo público. No
final eu pego o prêmio. O jogo sujo sempre fez parte do jogo. Só uma pessoa
muito ingênua para ficar espantada com o que acontece nessa edição. Não que ela
não tenha um diferencial. Claro que sim. É evidente que um tipo de discurso
chegou ao BBB: o discurso da lacração.
Quem é mais gay ou mais negro? Quem é o mais oprimido? Ou
mais coitado (ou coitada)? Quem é mais heroico na defesa desses setores? O
sujeito que beijou outro homem é gay mesmo ou está fingindo? Quem está
defendendo os direitos dos negros o faz por convicção ou fingimento? As
acusações entre si se avolumam. Não
faltam vozes nas redes sociais de pessoas que se dizem decepcionadas com algum
dos participantes como se os conhecem pessoalmente.
Da forma como se configuram as redes sociais, a lacração veio
para ficar. Falo qualquer coisa impactante (mesmo coisas irresponsáveis) e
ganho notoriedade. Não subestimemos a lacração, ela já elegeu dois presidentes:
Trump e Bolsonaro. Então por que ela não ganharia o prêmio máximo do BBB? O
único problema, claro, é que todo mundo quer lacrar, e mesmo aqueles lacradores
das boas causas sociais vão se revelar bestas enlouquecidas pelo dinheiro. Neste
BBB o que assistimos é uma revelação sobre a máscara (sim, sempre foi uma
máscara) da lacração. “Sou defensor de gays, negros e mulheres, mas se um deles
tentar me impedir de ganhar o prêmio eu o esmago sem dó”.
A lacração depende de um impacto. Por isso ela fomentou o
crescimento da extrema direita. Citações homofóbicas, racistas, misóginas,
etc., chamam mais a atenção do grande público e projetam seus veiculadores. Tal
como está configurada, a internet desfavorece o argumento racional e projeta a
notícia de grande impacto. E isso tanto faz qual seja a ideia que você defenda.
Quanto mais grotesca, melhor. Mesmo a lacração “do bem” (detesto essa
expressão), chamada genericamente por defensores e detratores pela expressão
“politicamente correto”, tem que se render à lógica das redes sociais. É por
isso que o chavão, a frase única, o meme curto e grosso são os métodos usados
por esquerda ou direita nas redes sociais. O impacto é mais efetivo.
O que estamos vendo hoje no BBB nada mais é que a
transferência da internet para a TV da barbárie típica das bolhas das redes
sociais. E o BBB é o lugar ideal para isso acontecer. Uma casa em que pessoas
confinadas devem disputar um prêmio em dinheiro é o lugar ideal para que
máscaras de falsa bondade possam cair. Na verdade desde o caso Marcius Melhem
que a modinha do politicamente correto está sob cerco. Justamente o sujeito que
se recusava a fazer piadas ofensivas a negros, gays e mulheres é acusado de
assédio sexual por mulheres. E agora o comportamento desastroso das
subcelebridades no BBB. Máscaras sempre caem.
O moralismo hipócrita é inerente a esse processo. Tanto faz
se à direita ou à esquerda preciso provar minha fidelidade aos valores pregados
pelo grupo que defendo. Aqueles que saem da linha são linchados em público nas
redes sociais. O linchamento virtual e o “cancelamento” são fenômenos que
merecem um texto à parte, mas são partes constitutivas do processo de lacração.
Ao participar deles mostro minha fidelidade canina ao grupo. O moralismo serve
como elemento unificador dos valores do grupo. E não poderia ser diferente. Em
um ambiente povoado por chavões e memes, o debate passa a ter um rebaixamento
intelectual óbvio. Apenas simples regras moralistas fáceis de serem aceitas são
as fontes de identificação do grupo.
Enquanto o moralismo de direita tem os tons do moralismo
religioso (com seu imenso e antigo aparato de hipocrisia), a esquerda lacradora
criou o seu moralismo a partir da identificação com o oprimido. O identitarismo
tem seu papel fundamental aí. O negro, o gay, a mulher, passam a serem os
heróis oprimidos da sociedade, independente de seu papel social, de sua
condição de classe (parece que a esquerda do politicamente correto é a primeira
da história a se afastar do conceito de luta de classes), de sua moralidade ou
formação cultural. Dá-se a esses sujeitos um crédito infinito em suas palavras.
Qualquer acusação feita por um membro dessas categorias contra qualquer pessoa
é tida como absolutamente verdadeira, existindo ou não provas concretas sobre a
acusação. Desce sobre elas uma aura de pureza espiritual.
Alem do crédito infinito para a palavra do oprimido, aparece
também a criação infinita de subgrupos de oprimidos. Hoje o nome oficial do
movimento gay é LGBTQ+, esse símbolo + é a simplificação dos diversos subgrupos
classificatórios que podem infinitamente serem criados e somados ao grupo
original. Se você for um gay que senta com as pernas cruzadas e come com a mão
direita já faz parte de um subgrupo. Como nem todo mundo é negro, gay ou
mulher, abre-se também a possibilidade
de criação infinita de subgrupos oprimidos: gordo, anão, cadeirante, canhoto,
baixa estatura, quem gosta de animais, vegano, trabalhador de uber, tocador de
viola, flanelinha, flamenguista, vascaíno, palmeirense, professor, arquiteto,
engenheiro, garçon, etc. A lista vai, literalmente, ao infinito.
Independente do exagero cômico das palavras citadas acima, a
lógica é essa: preciso fazer parte de um grupo oprimido. Na falta de uma
identificação óbvia, eu crio minha própria categoria de oprimido. E aí estou
livre para criar minha máscara de pureza e lacrar nas redes sociais. Depois vou
ao BBB e revelo que sou um monstro grotesco de ambição. Máscaras sempre caem.
E se o destino das máscaras é sempre cair, esse moralismo não
tem futuro (nem o da direita, embora ele seja mais firme por se apoiar na
tradição religiosa), pois ele é só distração e fuga. Enquanto fico perdendo meu
tempo nas redes sociais lutando pela igualdade simbólica de grupos e subgrupos
infinitos de supostos (ou reais) oprimidos, a desigualdade real aumenta. O
caminho do moralismo (incluindo o da direita) é a desmoralização.
O racismo, a homofobia e o machismo são chagas terríveis que
merecem ser combatidas. São assuntos sérios demais para serem deixados nas mãos
de lacradores narcisistas mascarados de heróis. Oportunistas que se aproveitam
das ilusões de suposta pureza espiritual dadas às suas identidades específicas,
mas que não possuem nenhum compromisso real com essas lutas. Hoje no Brasil o
maior inimigo do movimento negro é um negro (o presidente da fundação
palmares), o maior inimigo do movimento LGBT é um gay (o deputado estadual
Douglas Garcia, do PSL de São Paulo) e a ministra Damares é a maior inimiga do
movimento feminista. A edição atual do BBB só está escancarando algo que já era
óbvio há muito tempo.
Aristóteles Lima Santana é escritor, militante politico e professor de
geografia da rede estadual de ensino.