Quando assisti “Parasita” lembrei-me de imediato de “Casa
tomada”, o famoso conto de Julio Córtazar. Lembrei também de alguns contos em
que o vampiro é convidado a entrar na casa e aos poucos vai destruindo a vida
de quem está dentro dela. Mas em “Parasita” não estamos no reino do Fantástico.
Estamos na Coréia do Sul do início do século XXI, em um momento de extrema
concentração de renda e exclusão social, fruto de uma sociedade dividida entre
vencedores e perdedores da globalização.
As comparações com “Bacurau” são inevitáveis. Ambos os filmes
falam do mesmo tema: um grupo de excluídos sociais que resiste à miséria e à
sua própria extinção. Diferentes na forma de resistência, no local e nos meios
utilizados. É interessante que ambos tenham surgido quase ao mesmo tempo e
provocado uma tempestade de debates. Apesar de diferentes, são semelhantes na
provocação.
Podemos afirmar que “Bacurau” e “Parasita” são tentativas de
fugir do politicamente correto da esquerda liberal? Talvez, mas ainda é cedo
para afirmar isso. No politicamente correto a violência é amenizada ou
ocultada. Exemplo é o filme “Jo jo rabbit”. O militante nazista é reduzido a
uma criança ingênua fanatizada pela propaganda do Estado; Hitler aparece sempre
como um pai simbólico bonachão e engraçado; o encontro entre a criança
militante e a judia é a representação clara do discurso do “contato com o
outro”, da possibilidade do diálogo “entre diferentes”. A relação de opressão é
amenizada para provocar um final em que os “diferentes” se encontrem e criem
uma relação duradoura. “Jo jo rabbit” é o politicamente correto da esquerda
liberal em estado puro.
Já em “Parasita” e “Bacurau” a violência é latente. No filme
brasileiro ela é mais escancarada e no coreano ela compõe o “gran finale”. Em
ambos, os oprimidos não estão tão preocupados em dialogar com “o outro”, a não
ser para enganá-lo e defender seus interesses. Neles a concorrência neoliberal
é mostrada como barbárie total: em “Bacurau” os pobres se armam para defender
sua vida e em “Parasita” os pobres jogam sujo com outros pobres na disputa
pelos empregos. Ninguém é ingênuo. Não há “encontro com o outro”. O que existe
é disputa e violência.
“Parasita” é um filme político? Claro que sim, apenas não é
feito com um discurso óbvio. A denúncia social é clara: a sociedade competitiva
neoliberal gerou a divisão entre vencedores e perdedores e os últimos estão
desesperados por um lugar ao sol. Um desses bobinhos seguidores de Mises
escreveu em seu site questionando o filme. Argumentou que se o rapaz sabia
inglês, a moça era excelente desenhista e o pai um ótimo motorista, jamais
estariam desempregados. Interessante. Ele simplesmente eliminou a concorrência
entre os pobres da equação (justamente o tema fundamental do filme). Então a
concorrência existe entre empresas, mas não entre trabalhadores? No artigo ele
chega a elogiar a ditadura militar autoritária que fez as reformas neoliberais
no país. Como se sabe, a Coréia do Sul compôs no passado o que chamávamos de
“tigres asiáticos”. Países da Ásia adeptos das reformas neoliberais e que
apresentaram sinais de crescimento econômico acelerado na década de 80.
“Parasita” é justamente o filme que vai questionar o suposto milagre econômico
dos “tigres”. Um petardo contra as ilusões do desenvolvimentismo economicista
dos defensores da ortodoxia neoliberal. É mais impactante do que “Bacurau”.
Este nos fala de excluídos de uma periferia rural, ou seja, de um mundo em extinção
com a industrialização do planeta. Já “Parasita” nos fala do mundo em expansão:
da exclusão social dentro da modernização industrial da globalização.
A competição acirrada entre os pobres é o grande projeto da
direita neoliberal. A morte definitiva da luta de classes. Os pobres agirão
como ratos disputando comida e espaço, enquanto a elite saboreia os melhores
cardápios em ambientes espaçosos. O rato é um parasita e ele está
simbolicamente em todos os lugares do filme. Ratos se infiltram nas casas; ratos
moram em buracos embaixo da rua (como a casa da família pobre protagonista); e
ratos moram em buracos e cavernas secretas de uma casa. Ratos invadiram a casa
do milionário e já existiam outros ratos morando lá. Um à vista e outro
escondido (o tema do rato escondido na parede também é usado em “Jo jo rabbit”,
mas neste caso explorando as fantasias paranoicas do antissemitismo). Para
invadir e tomar completamente a casa, os novos ratos devem expulsar os antigos.
Não podem existir dois grupos de parasitas habitando um corpo. Um deles tem que
sair.
O “gran finale” é extraordinário justamente por mostrar a
falsidade da grande ilusão da elite econômica: “a violência dos pobres não nos
atingirá com a morte da luta de classes”. O filme é um tapa na cara de quem tem
essa ilusão estúpida. “Os pobres vão se matar, mas estaremos a salvo. Afinal,
somos gentis com eles”. A gentileza da família rica é elogiada por elementos da
família pobre, até que estes últimos vão descobrindo aos poucos que seu cheiro
incomoda aos donos da casa. Cuidado com o culto à gentileza. Aqueles que são
gentis com você podem não gostar do seu cheiro. Achei formidável essa lição do
filme.
Os coreanos não conhecem, mas um músico/poeta brasileiro
chamado Cazuza já alertava que quando “sua piscina está cheia de ratos/suas
ideias não correspondem aos fatos/o tempo não para”. E se a história e o tempo
continuam, as ilusões ideológicas da elite sobre o fim da luta de classes ou de
que a violência dos pobres não a atingirá, são inúteis. Manter as ilusões não
as fará tornarem-se reais. É claro que a luta de classes acontece quando temos
uma “classe em si que se transforma em classe para si”. Sem a consciência de
pertencimento a uma classe, o que restará aos pobres é tornarem-se semelhantes
a ratos parasitas e matarem-se entre si pelas migalhas da elite. Mas existirá
uma forma de controlar todos os ratos? Eles vão se contentar sempre só com as
migalhas? Nunca invadirão sua casa? Hoje a elite pode talvez se sentir segura.
Mas e amanhã? O tempo não para.
Aristóteles
Lima Santana é escritor e professor.