Podemos começar com uma pergunta: existe leitura que seja
útil e outra que seja inútil? Depende de uma série de fatores. Depende de seu
interesse pessoal, de seu tempo disponível, da sua curiosidade, do grau de
prazer que você tem em ler, etc. Você pode até afirmar aquela frase bonitinha
que diz que “toda literatura é útil, inclusive dos livros ruins”. Em parte você
terá razão, pois sem os livros ruins não conseguiremos fazer a distinção
daqueles que consideramos bons. Mas lembre de que você tem um tempo determinado
na Terra e o número de livros ruins é bem maior que o de livros bons. Você não
é imortal, lamento.
Lembre também que todos nós temos prioridades (se você não as
tem é porque não sabe planejar sua vida) e existem leituras fundamentais que
são importantes quando se planejam as prioridades (não poderão existir
prioridades sem um planejamento prévio). Seguindo essa linha de raciocínio, é
evidente que algumas leituras serão mais úteis do que outras. Elas
corresponderão ao seu planejamento e você as terá em primeiro plano. Claro que
você pode optar por não planejar nada, não ter prioridade nenhuma e ler tudo o
que aparecer na sua frente sem critério nenhum. A vida (e a biblioteca) é sua.
Você é quem sabe dela.
A necessidade de priorizar algumas leituras é evidente, mas
não transforme isso em dogma intransponível. Quebrar regras também faz parte de
um desenvolvimento saudável e construtivo. Sem falar que qualquer estratégia de
planejamento deve saber adaptar-se às novas situações e desafios que porventura
venham a surgir. Lembre-se de que “quem sempre anda na linha é trem” e se você
não souber mudar um percurso poderá ir direto para um precipício.
Lembre-se também que prioritário refere-se ao que vem em
primeiro lugar, claro, mas não limite sua pesquisa ou curiosidade a isso. Quem
disse que os secundários e terciários não são interessantes? Um clássico da
literatura só tem esse status porque ele está vivo na influência que exerce nos
escritores atuais. Se um livro ou autor não influencia ninguém hoje é porque
não estamos lidando com um clássico. Então, como você saberá que tal autor (ou
obra) é clássico se você não conhece a literatura feita depois dele, incluindo
a atual? E quem disse que alguns dos atuais não poderão ser considerados clássicos
no futuro?
Apesar de reconhecermos a importância de priorizar algumas
leituras, devemos apontar um problema sério no conceito de leitura útil: o
utilitarismo imediato voltado para o mercado. Quando um médico lê apenas livros
e artigos sobre medicina ou um advogado lê apenas sobre Direito, estamos em uma
situação dessas. É claro que a sociedade ganha quando profissionais se
especializam em sua área, pois assim teremos um número maior de pessoas
competentes aptas a fazer um bom serviço na profissão que abraçou. Mas isso
limita sua visão sobre a individualidade e a coletividade humana, e sobre a
sociedade como um todo. A literatura nos coloca em contato com um mundo de
personagens e situações diversos que permitem ampliar nosso entendimento sobre
os paradoxos, os conflitos, os sentimentos, as tendências inatas e adquiridas
dos indivíduos e da coletividade. A literatura talvez não torne você um médico
ou advogado melhor do que os outros, mas tornará você um indivíduo melhor. Um
ser humano melhor.
Alguém lendo esse texto poderá argumentar que ao tornar o
indivíduo um ser humano melhor, a literatura também o tornaria um profissional
melhor. Sim, com certeza, mas isso só será levado em consideração se esse
indivíduo aceitar que não apenas critérios técnicos são responsáveis pela
formação profissional. O mercado é dominado pelo tecnicismo. A visão geral é da
utilidade prático-técnica do conhecimento. Boa parte desses profissionais não
vê utilidade nenhuma em ler contos, novelas ou romances (ou poesia). Estão preocupados
em ler sobre suas respectivas profissões. Nesse caso a leitura útil serve como
cimento para a mediocridade.
Em meu caso devo afirmar que tenho também minhas prioridades,
embora eu não as trate como grilhões aos quais eu estaria preso. Como sabem, eu
também pratico a literatura e tenho um linha de trabalho que vai,
preferencialmente mas não apenas, do conto policial ao realismo fantástico. Por
realismo fantástico falo da tradição do gótico (Hoffman, Poe, Lovecraft, etc.),
da influência do fantástico latino-americano (Borges, Córtazar, etc.), do
absurdo kafkiano, da ficção científica, do fantástico das lendas antigas, etc.
O um milhão e meio de páginas (risos) das obras de J. K. Rowling, Tolkien ou R.
R. Martin não estão em meus planos. Mas não censuro quem os tenha como
prioridades e influência. A arte literária é múltipla.
É bom terminar lembrando que o hábito da leitura é um
processo de aprendizagem. Aprendemos a construir o gosto pela leitura. Isso
requer planejamento educacional e também vontade individual. Aprender a
planejar suas leituras sem cair em grilhões que aprisionem e nem na
mediocridade do tecnicismo já será um grande passo para isso.
Aristóteles Lima Santana é escritor e professor.