Tem sido quase sempre assim: quando alguém quer defender a honestidade, o estado correto das coisas, indicar que foi desrespeitado, que está sendo afetado nos seus direitos ou qualquer coisa do gênero, cai nessa famosa expressão: “Nós, pessoas de bem...”.

Frases comuns no trânsito: “Eles não têm o que fazer (referindo-se ao guarda ou policial que solicitou seus documentos)? Por que não vão prender bandidos em vez de importunar pessoas de bem?”. Muitos de vocês já ouviram ou falaram isso. E não faz sentido. Como podemos saber, estando entre os do bem e os do mal, quais os que fazem parte do primeiro grupo? Será que os policiais têm uma habilidade sobre-humana para identificar (não por hipótese, mas com precisão) quem deve ou não ser abordado? Será que nós sabemos quem é “de bem” apenas olhando? O problema está exatamente nisso: não sabemos. E, sem nenhum tipo de reflexão, muitos de nós, como forma de se livrar das normas (uma blitz, por exemplo), se apoiam, levianamente, na ideia de que é possível identificar com certa facilidade pessoas decentes. O que vejo é rigorosamente contrário.

Não tenho a intenção de inventar uma nova maneira de diferenciar os bons dos malfeitores. No entanto, mesmo correndo o risco de ser mal-entendido, percebo que as pessoas ditas “de bem” são, dia após dia, menos confiáveis. Portanto, o trabalho de quem se dá a tarefa de lidar com segurança, com a mínima paz social, tem sido cada dia mais difícil. As fileiras inimigas têm aumentado. Pior: engrossadas por muitos que só sabem gritar, para manter as aparências, que as coisas não podem continuar do jeito que estão. Insisto: o problema são essas pessoas ditas “de bem”. Será que estou exagerando? Vejamos.

Vejo donos de bares e mercearias, mesmo sabendo que é contra a lei, vendendo bebida alcoólica a garotos e garotas. Gente vendendo álcool a pessoas visivelmente doentes, já destruídas pelo alcoolismo. O vendedor é um homem “de bem”, certo? Ele está apenas defendendo seu pão de cada dia? Discordo. Sei de pessoas que usam de meios escusos para passar na frente de outros cidadãos, com consultas marcadas em postos, gente mais necessitada, que aguarda há meses, apenas porque conhecem alguém influente nos serviços de saúde. E gente que entra em vagas de estacionamento reservadas para deficientes e idosos e se acha sortuda, por ter encontrado o espaço vazio. Pessoas de sorte e espertas, gente “de bem”, sem dúvida. Conheço muita gente que espera que a polícia, autoridades em geral, faça vista grossa quando precisam burlar as leis, mas, quando são vítimas de algum roubo ou irresponsável pelas ruas, argumentam que esses mesmos policiais deveriam ser mais eficientes e enérgicos no seu trabalho? Há cada dia mais pessoas usando, de maneira egoísta e cruel, seus filhos contra seus ex-esposos e exposas (sem pensarem nas crianças), com o argumento de que todo mundo usa as armas que tem. Será que este mundo está repleto de pessoas bem intencionadas? É evidente que não.

O que tem se reproduzido é a malícia, a farsa e a hipocrisia. Boa parte de nós sabe que é aliado da maldade, que provoca discórdia, que não faz nada pelo que é certo. E quando faz é apenas para manter as aparências. Estou consciente, cada dia mais, que a ruína humana se releva mais frequentemente, não pela óbvia maldade, mas pela bondade fingida, por aqueles que carregam o crachá de “gente boa” sem jamais fazer verdadeiramente o bem a ninguém, a não ser a si mesmos. 


Gecildo Queiroz é escritor e professor